Por amor

Postado por marcio lelis , quarta-feira, 14 de julho de 2010 11:18


A vida para mim nunca mais foi a mesma desde aquele ano. Passei a enxergar e valorizar cada detalhe como único. Afinal, nada é mais precioso do que poder enxergar. Aconteceu no verão daquele inesquecível ano. Ano de copa do mundo. Brasil pentacampeão. Ano eleitoral. Eu não podia imaginar!
Sai do trabalho, naquela tarde de ensolarada de terça, distraída. E, caminhando sem rumo fui parar na orla da lagoa da Boa Vista. Embriagada pela beleza da lagoa e relembrando toda minha trajetória até aquele dia, caminhei por horas em volta da lagoa e quando me cansei, caminhei até o parque náutico para descansar. Ainda distraída -vejam só como a vida é um mistério- atravessei o caminho de um fotografo que ali trabalhava. Sem perceber, entrei na sua frente bem na hora do “click” e, fui eu, quem acabou saindo na foto. Pedi mil desculpas. Ele, humildemente, me desculpou e, até, elogiou a foto que tirou de mim.
Fui embora envergonhada. Triste até. Mas, uma coisa me incomodava de uma maneira tão grande que nem sequer consegui dormir. O rosto daquele homem não saia da minha cabeça. Era como se tivesse sido tatuado em minha mente e exposto aos meus pensamentos. Não sabia como, mas tinha de revê-lo novamente.
Eu trabalhava num salão de beleza no centro. Passei o resto da semana pensando naquele homem. No sábado, quase no fim do expediente, chegou um cliente novo para lavar os cabelos. Estava cansada e não quis atender. Minha amiga foi quem o atendeu. Porém, quando olhei pelo espelho – pensado “quem poderia vir no fim do expediente?”- vi que era ele. O homem da foto. O cara que invadiu meus pensamentos e não quis sair. Larguei o que estava fazendo e pedi para que eu o atendesse. Lavei seus cabelos como se lavasse de um filho. Era tão bom estar ali. Contudo, sem querer deixei cair espuma sobre seus olhos causando-lhe forte ardência. Sem graça, pedi desculpas e ele – meio sem abrir os olhos - me desculpou como havia desculpado antes. Ele se foi. Tomei uma “dura” do meu chefe por errar com um cliente. Fui embora arrasada.
Logo que anoiteceu, peguei o endereço do estúdio dele no salão e fui ao seu encontro. Tinha de me desculpar por todos os transtornos que lhe causei. Agora eu sabia o seu nome. Fernando Miguelli. Mas, como ir até ele? Como dizer o que estava sentindo? Não sabia, mas fui assim mesmo.
Quando cheguei, ele estava fotografando. Graciosamente. Com um olhar tão clinico que fazia até o mais feio ficar belo. Não quis incomodá-lo e fiquei somente observando o seu trabalho. Distrai-me com as fotos na parede.
_ oi moça. Como vai? Disse Fernando se aproximando.
_ oi. Respondi no susto. Vou bem. Conclui sem graça.
_ quer um café, uma água, alguma coisa?
_ não, não, vim só te pedir desculpas de novo.
_ pelo quê?
_ah, por todos os transtornos que te causei essa semana.
_ pare com isso. Não foram transtornos e... Como você se chama mesmo?
_ Aline.
Conversamos por horas. Fernando me fotografou, rimos juntos, assistimos TV, nos tornamos amigos. Desde aquele dia começamos a sair, a trocar telefonemas, segredos. Fui com ele em viagens com motociclistas – coisa que nunca gostei - pelo simples fato de estar com ele. É aqui que começa minha tristeza. Numa noite chuvosa de maio, fui até o estúdio para irmos embora juntos. Julio, o ajudante de Fernando, ia saindo e me disse que Fernando estava tomando banho para irmos embora. Subi para esperá-lo. Já no estúdio, encontrei-o vestido. Conversamos, enquanto esperávamos que a chuva passasse. Tiramos fotos um do outro. E, quando o filme da maquina acabou fui até o quartinho dos fundos buscar outro. Como sou “baixinha”, quase não alcancei a prateleira onde estava o filme. Logo que consegui pega-lo, sem que percebesse, esbarrei em um vidro de solução ácida que Fernando havia deixado aberto. O ácido caiu sobre meus olhos tirando de mim a visão e os sentidos.
Não sei o que aconteceu depois. Sei, pelo que Julio me disse, que Fernando me socorreu e cuidou de mim todos os dias em que permaneci no hospital. Fui transferida para vários hospitais até chegar a um onde consegui o transplante necessário para que recuperasse a visão.
Meses depois, já estava bem. Enxergando novamente, e tentando reconstruir minha vida destruída pelo acidente. Contudo, nunca mais vi Fernando. Julio não me dizia onde ele estava. O estúdio havia fechado e nada mais ouvi falar sobre ele.
Certo dia, Julio apareceu no salão onde voltei a trabalhar. Ele estava mudado. Sério. Mais maduro.
_ Como você esta Aline? E os olhos? Perguntou-me.
_ Vou bem. Ainda, sinto dores, mas, estou bem.
_ Fico feliz. Julio deu uma pausa. Vim trazer um presente para você.
_ O quê é?
_ olhe. Julio me entregou um envelope e, quando abri, tinha uma revista com os seguintes dizeres: “Ultimo trabalho da carreira do fabuloso fotografo Fernando Miguelli”. Olhei a foto e, para minha surpresa era eu na foto.
_ O que é isso? Perguntei assustada.
_ Você pode sair? Disse Julio com o rosto triste. Sai do salão com ele. Fomos até a praça e ali nos sentamos. Perguntei sobre Fernando. Ele suspirou.
_ não devia estar te contando. Ele me fez jurar que não diria. Mas, é mais forte que eu.
_ Conta. Já estava aflita.
_ Quando você estava internada e disseram que você precisaria de um transplante para voltar a enxergar, Fernando saiu do hospital, pegou sua moto e correu como se fosse a ultima vez.
_ Não estou entendendo Julio. Interrompi.
_ Calma. Disse Julio. _ logo depois foi até o estúdio, juntou todas as suas coisas e trancou num baú, me entregou a chave da moto e me disse: “Você é o melhor homem que já conheci Julio. Foi bom vê-lo”. E perguntei o que ele estava dizendo e, então, ele me disse que doaria sua visão, seu instrumento de trabalho, para que você voltasse a enxergar.
_ como assim? Perguntei com os olhos em lagrimas.
_ não concordei com aquilo. Tentei convence-lo do contrario, mas, - Julio interrompeu-se com lagrimas - mas, Fernando já tinha tomado sua decisão. Ele me abraçou e disse a frase que jamais vou esquecer: “foi bom ver você, amigo!”
_ Onde ele esta? Perguntei já não contendo minhas lágrimas.
_ depois daquele dia, ele foi ao hospital onde você estava e doou sua visão pra você. A cirurgia foi um sucesso. Você ficou bem e ele foi embora para casa de uma casa no interior onde sempre passava as férias. Deu o estúdio pra mim, mas, não pude continuar com o trabalho. E nunca mais o vi. Julio chorou. _ falei com ele, semana passada, por telefone sabe! Ele disse que esta bem... eu queria ser como ele. Apesar de tudo está cada dia mais forte e maduro.
_ onde fica essa casa?
_ Papagaios.
Não voltei para o trabalho naquele dia. Depois que Julio foi embora, fui direto pra casa atordoada. Chorei como criança e decidi ir ao encontro de Fernando. Peguei o primeiro ônibus para a cidade de Papagaios e me hospedei num hotel local. Procurei o endereço que Julio havia me passado e não o encontrei lá. A empregada que tomava conta dele e da casa disse que ele havia saído com Heitor, seu cão guia, - que escolhemos juntos para o cachorro que planejávamos comprar- e ido até a praça.
Fui até a praça indicada por ela. Quando cheguei, ele estava sentado num banco jogando uma bola para Heitor buscar. Não pude conter minhas lágrimas e comecei a chorar. Fui me aproximando e vi, no chaveiro que carregava, a primeira foto que tirou de mim, no dia em que cruzei o seu caminho. Faltava palavras. Como da primeira vez.
Fiquei imóvel por um momento. Suei frio. O chaveiro caiu. O barulho me fez cair em mim novamente. Peguei o chaveiro e coloquei em sua mão sem dizer uma só palavra. Ele começou a responder um obrigado quando sentiu minha mão e interrompeu a frase pela metade.
_ é você? Perguntou. Fiquei imóvel. Não conseguia dizer nada. _ eu sei que é você. Continuou.
_ sou eu sim. Respondi
_ Obrigado pelo chaveiro.
_ por nada.
_ sente-se. Sentei-me e permaneci calada, olhando pra ele e segurando minhas lágrimas.
_ como está o dia? Heitor é uma boa companhia, mas, não sabe falar. Disse ele dando uma risada.
_ está lindo. Respondi
_ como a terça onde nos conhecemos?
_ sim.
_ deve estar mesmo. O vento está maravilhoso e não está frio hoje. Como vão seus olhos?
_ bem melhores.
_ fico feliz. Naquele momento não me contive e comecei a chorar. _ por que você esta chorando? Perguntou-me Fernando.
_ por que Fernando? Por que você fez isso com você?
_ Fiz o quê Aline?
_ só me responda por quê?
_ por amor.
Nada poderia ser dito naquele momento. Ficamos em silêncio por minutos, até que ele rompeu o silêncio:
_ já é tarde, tenho que ir. Heitor deve estar com fome.
_ eu vou te ver de novo? Perguntei.
_ estarei sempre com você lembra-se? Naquele momento, lembrei da frase que ele me disse antes de perder os sentidos no dia do acidente: “Não se preocupe, estarei sempre com você.”.
_ eu sei. Segurei suas mãos e beijei-lhe o rosto. Fernando se levantou e foi caminhando.
_ espera! Gritei. Ele se virou para trás e depois de alguns segundos continuei: _ eu te amo. Fernando sorriu e disse:
_ o amor é maior que a luz do dia, meu anjo... Eu sei. Assim que disse isso ele se virou e prosseguiu seu caminho. Não me contive e chorei novamente.
Voltei para casa no mesmo dia. Passaram-se vinte anos desde o ocorrido. Fernando e eu nos casamos, tivemos dois filhos, e fomos felizes. Fernando faleceu por problemas cardíacos há dois anos. Pena que só hoje resolvi expressar o quanto, realmente, o amei.
Conto a minha história para quem quiser ouvir. Falo do que se capaz de fazer por amor. E da dor de não expressar seu amor de verdade enquanto se tem a pessoa. Escrevo minha historia, mas hoje, a personagem principal não vai poder ler ou ouvi-la.


Márcio Lelis

1 Response to "Por amor"

Victoria Lopez Says:

Nossa isso queé amor,o resto nao é nada a nao ser palavras.Serio mesmo esse texto me arrepiou,e com certeza me fará refletir por muit tempo....

pensamentos

  • "não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria" Machado de assis
  • "não se deve fugir de uma fraqueza e sim lutar contra ela " Robert louis stevenson
  • "a vida é feita de segundos e detalhes" Jonas elias de almeida

agradecimentos

obrigado pela visita;

volte sempre que desejar...



um forte abraço...

Márcio Lelis